sábado, 21 de agosto de 2010

A APLICABILIDADE DO PENSAMENTO FILOSÓFICO NA ARTE EDUCAÇÃO




Antonio Bokel


A APLICABILIDADE DO PENSAMENTO FILOSÓFICO NA ARTE EDUCAÇÃO


“Não se deve ensinar pensamentos, mas a pensar; não se deve carregar o aluno, mas guiá-lo se quer que ele seja apto no futuro a caminhar por si próprio. [...] Ampliar a aptidão intelectual dos jovens que nos foram confiados e formá-los para um discernimento próprio [...] Semelhante procedimento tem a vantagem de que o aprendiz, mesmo que jamais chegue ao último grau, como em geral acontece, terá sempre ganho alguma coisa com o ensino e se terá tornado mais atinado, senão perante a escola, pelo menos perante a vida."
Immanuel Kant(1)

Imaculada Conceição


É difícil falar a propósito da necessidade do estudo filosófico no âmbito da prática da arte educação sem tocar neste ponto essencial: de que essa necessidade não difere em nada da que podemos exigir para todas as ordens da realidade humana. Qualquer que seja a área de estudo, pesquisa ou ação, o pensamento filosófico e reflexivo é de suma importância.

A origem da filosofia confunde-se com a origem das primeiras indagações humanas (primeiras, porque essenciais) em suas tentativas de compreender o mundo, a realidade e, sobretudo, buscar um sentido para a própria existência.

O “papel” da filosofia (se formos procurar por uma “utilidade”: sempre tão exigida!) é o de contribuir através do exercício do pensamento, da reflexão e da crítica para que nos tornemos mais conscientes, não apenas de nosso próprio ser (i.e., nossa singularidade enquanto indivíduos, únicos e insubstituíveis), mas também de nosso fazer e de nossa inserção no mundo (o espaço sócio-histórico-cultural-etc. do qual fazemos parte), portanto, como sujeitos históricos, sociais e políticos que somos. Mas é especialmente na consciência de sermos integrantes de uma mesma comunidade: a comunidade humana (pessoas que têm direitos, mas também deveres, sobretudo éticos; pessoas que diferem em suas contextualidades e se assemelham por nossa humana origem comum), que o pensamento filosófico participa mais ativamente. Mas e quanto à educação em arte?

Poesia visual de Alex Hamburg

Poucos devem duvidar da importância do pensamento reflexivo nas várias áreas do conhecimento humano. Mas talvez haja alguns que ainda questionem qual a real aplicabilidade do estudo filosófico numa área de natureza essencialmente prática, como é o caso da arte educação. É ter no entanto a vista curta ou não estar disposto a penetrar no coração mesmo do fazer artístico (seja este de natureza musical, teatral, literária, visual etc.).

Toda atividade artística exige um pensar específico (o pensamento visual, o pensamento espacial, o pensamento musical etc.) e uma inteligência própria que o viabilize. Ora, quem duvida que um músico não precise de uma atividade intelectual para criar e executar suas composições musicais? Ou que arquitetos não aliem inteligentemente visualidade espacial, beleza e cálculos matemáticos para o sucesso e viabilidade de seus projetos? Ou que um perfumista não faça plenamente uso de suas faculdades mentais para aliar conhecimentos de química com o prazer sensível de suas misturas aromáticas? Ou que um desenhista industrial não precise de uma inteligência matemática e de um atento senso comum para aliar prazer estético, praticidade e utilidade? O fazer artístico depende de um pensamento reflexivo capaz de conectar elementos diversos pertencentes às nossas múltiplas faculdades (capacidades), tais como o entendimento, a imaginação, a sensibilidade etc.(2)

Certo, nossos alunos não são - ao menos ainda e talvez nunca pensem mesmo em ser - artistas plásticos, músicos, paisagistas, dramaturgos, estilistas, escritores, cenógrafos, cineastas, fotógrafos, dançarinos etc. Aliás, não é objetivo da arte na escola fundamental formar artistas e/ou críticos de arte; mas oportunizar o exercício do fazer/pensar/julgar/experimentar arte (numa compreensão de suas contextualizações). O que eu quero sublinhar aqui é que o exercício do fazer artístico não difere muito do de um profissional para o de um “amador” (alguém que só faz por hobby ou pelo simples prazer de fazer gratuitamente), assim como não mais para o de nossos alunos.

Henry Matisse

O que difere a prática artística profissional da gratuidade singular (“desinteressada”) de todo fazer/pensar artístico (o “livre jogo das faculdades”) é a intenção (o “interesse”) - que se concretiza no final do processo. O processo em si (i.e., enquanto forma de pensamento) não difere muito. Nosso aluno, quando da construção de seu trabalho de arte, faz uso, tanto quanto o artista profissional, do “pensamento reflexivo” - que é a raiz do pensamento estético(3). O que difere é que ele não tem por pretensão, por exemplo, sua inserção no Mercado e/ou na História da Arte, sua pertença ao meio artístico etc. ( - isso que não elimina toda “intencionalidade”, mas marca uma diferença de perspectiva e de orientação final desta, que, no caso, estaria orientada especialmente para o processo de construção do trabalho – inclusive como produto final, porém indiferente ao que não seja o simples fazer/criar; em outras palavras: a interconexão do pensar-fazer). Em comum ainda, além do pensamento reflexivo, a capacidade de interagir e comunicar-se: elos de conexão do pensamento e sentimentos de quem cria e/ou aprecia e ajuíza com toda a comunidade humana.


Cena de "Animação Trash: Nossas Primeiras Experiências" realizada pelos alunos da E.M. Mario Piragibe na Oficina Itinerante de Animação(Núcleo de Arte Grande Otelo) (4)


Pensar e fazer ou fazer e pensar são duas faces de uma mesma inserção no mundo. Ambos estão de tal modo intimamente conectados que o simples imaginar uma prática sem pensamento ou um pensar sem uma prática não passa de fato de uma quimera (talvez, mesmo, inconcebível, inimaginável, impensável: pois ao conceber, imaginar ou pensar, já não estamos nós praticando um ato - mesmo que seja o ato íntimo de cogitar? - e este não pode, cedo ou tarde, vir a inserir-se no mundo e tornar-se realidade sob alguma forma?).

Pode-se pensar mal. Ou pode-se agir irrefletidamente (i.e., sem uma reflexão consciente das causas que originaram os nossos atos ou das conseqüências que eles terão). Pode-se negligenciar a conexão essencial entre o pensar e o agir; mas não se pode evitá-la (ao menos enquanto em pleno uso de nossas consciências). O mais simples fazer exige alguma forma de pensamento e uma inteligência específica que o acompanha. O mais elementar ato de pensamento exige uma ação que se executa no próprio ato de pensar; ou, em um nível mais elaborado, no construir-se como forma aplicada de pensamento (como obra, método, fala, informação, comunicação etc.), i.e., sua aplicação (realização) na ordem do real; ou, em uma etapa ainda mais completa (e complexa): na transformação da ordem do mundo e da vida.


Parangolé de Hélio Oiticica


(1) KANT, I. Lógica (Apêndice: “Anotações do professor Immanuel Kant sobre a organização de suas preleções no inverno de 1765-1766”).

(2) e (3) KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo – a terceira Crítica kantiana, onde o filósofo aborda o pensamento estético.
(4) Assistam a primeira parte de "Animação Trash: Nossas Primeiras Experiências": http://nucleodeartegrandeotelo.blogspot.com/2009/10/as-animacoes-de-nossos-alunos-estao-na.html

domingo, 8 de agosto de 2010

SOBRE O PLANEJAMENTO DE ARTES VISUAIS


guache s/ papel (tema corpo humano)

O porquê de um planejamento curricular único em artes visuais no ensino fundamental


Profa. Imaculada Conceição

Há alguns anos, decidi substituir o planejamento curricular por séries por um planejamento único. O que causou certa curiosidade entre os colegas que queriam saber se o trabalho assim não ficaria “repetitivo”. Foi pensando numa resposta que preparei este texto, escrito inicialmente em 2003, e que, com algumas modificações, passou então a acompanhar, em anexo, meu planejamento anual da escola.

Há uma frase, cuja autoria desconheço, que li numa revista (já fora de circulação) editada pelo CCBB (Centro Cultural do Banco do Brasil), Veredas (2003), que diz: “Todo grande artista um dia foi pequeno”. Essa frase "identifica" meu projeto de trabalho. Não que ele se volte para a formação de pequenos artistas, afinal essa não é nem de longe a proposta do ensino das artes na educação fundamental. O que quero dizer é que assim como todo artista começa com os mesmos elementos básicos da construção da visualidade e vão “progredindo” em seu uso, também nossos alunos precisam partir do uso e do conhecimento desses mesmos elementos básicos e, ao se apropriarem deles, irem progredindo em seu uso.

Os projetos desenvolvidos pela escola (ou pela Rede) a cada ano letivo são integrados ao planejamento de base, assim, a diversidade entra através de várias formas de propostas de trabalho com as turmas. Propostas que se delineiam a partir das mais diferentes situações.(1)

Neste planejamento (único) de base, enfoco elementos essenciais das artes visuais, dos quais os artistas (e qualquer pessoa que se veja diante de uma criação visual) trabalham constantemente, como, p.ex., cor, forma, proporção, luz/sombra, espaço/tempo, movimento; a matéria usada, o suporte, as técnicas etc. Enfoco, ainda, os modos de ver as artes visuais, a compreensão dos estilos artísticos, dos gêneros de composição etc. Por se tratarem de elementos pertinentes a toda criação visual, estes são lançados logo nos períodos iniciais e rememorados até a última etapa do ensino fundamental. Um dos motivos de rememorar, além de uma maior vivência com esses elementos essenciais das artes, é que todo ano nos chegam muitos alunos novos que nunca estudaram arte e tudo é novidade.

Vejo como essencial também o conhecimento do percurso histórico da arte. No entanto, como os períodos (Renascimento, Barroco, Modernismo etc.) já são estudados nas aulas de História, dou-me à liberdade de trabalhar independente destes. Assim, priorizo um enfoque global.


Eat-art: "Como era gostosa minha obra: Arte devorada"!

Desde a etapa inicial de meu trabalho com os alunos, deixo claro que as artes (no caso, as visuais) tiveram todo um percurso de criação durante a longa história dos humanos sobre a face da Terra. E que toda criação artística recebe influência não apenas dos períodos históricos, mas também de motivos pessoais (subjetivos) daquele(s) que concebe(m) e cria(m) a obra, do meio sócio-econômico-político-religioso etc. Enfim, que uma infinidade de motivos pode originar o acontecer da arte.

Vejo ainda como importante que os alunos comecem por conhecer o que é considerado atualmente arte; não apenas nas chamadas artes plásticas, mas nas artes visuais de um modo geral (o design industrial, a programação visual, a computação gráfica etc.), além de lembrá-los que existe uma infinidade de outras artes (como a música, o teatro, o cinema, a literatura etc.), visto que as ditas “artes plásticas” (cuja matéria leciono) mantêm no mundo contemporâneo um intercâmbio, melhor, uma forte interação com as diferentes linguagens artísticas.


Poesia visual (tema "eat-art")

Logo nas etapas iniciais (o que se propagará por todas as ulteriores) já apresento obras modernas e contemporâneas – mais próximas à vivência dos alunos, à nossa época -, das quais eles apreciam as construções visuais, estilísticas, as contextualizações etc. Apresento então aos alunos a tríade das artes contemporâneas: criação (original) X reprodução (cópia) X apropriação (recriação a partir de uma releitura). Mas sem fazer disso uma obsessão, como vejo muito por aí. Apenas para possibilitar uma melhor compreensão de grande parte da visualidade contemporânea.

Acho relevante ainda ver os conceitos de arte “perene” e “efêmera” relacionando-os a uma compreensão dos valores (efêmero-perene) da vida e do mundo. Vejo também como interessante incluir observações pertinentes à mútua referência entre valores éticos e valores estéticos, ou seja, a relação entre as mudanças éticas (ocorridas no mundo geográfico-historicamente) e as mudanças estéticas (nas artes).


guache s/ papel A4 (tema corpo humano)

“Todo grande artista um dia foi pequeno” – quer dizer, todo artista começa com os mesmos elementos e vão “progredindo” em seu uso - de modo que a palavra “pequeno” tem dois sentidos, duas interpretações: um dia este foi criança ou adolescente (como nossos alunos agora) ou um dia, em início de carreira, este não era ainda um “grande artista” -. Para que os alunos não tenham as mesmas dúvidas que alguns colegas professores têm em relação ao planejamento único, procuro explicar-lhes que em toda criação plástica eles sempre farão uso destes elementos básicos das artes visuais. E se “não fica repetitivo” é que, a cada novo ano, de acordo com os projetos trabalhados pela escola, seleciono como ponto de partida para as propostas reflexões, criações e uso dos conceitos artísticos e/ou artistas ou obras de artes “inéditos” aos olhos dos alunos. O mundo das artes é amplo - sua história remonta aos primeiros passos da humanidade ainda na Pré-história e está sempre se renovando!


Esculturas em papel

Uma mesma proposta trabalhada – ou iniciativa dos alunos - terá diferentes respostas conforme o nível turma - sobretudo se houve ou não a oportunidade de uma vivência em artes em todas etapas anteriores. O que muda na aplicação prática é o grau de complexidade na abordagem, no pensar, no fazer e vivenciar a arte.

Gosto de lembrar o seguinte acontecimento. Certa vez, um grupo de alunos, quando esses estavam na então 6ª série (atual 7o. ano), já tendo terminado as atividades propostas, para não ficarem “à toa”, sentaram-se juntos e tiveram a iniciativa de (re)construir uns desenhos inspirados num famoso desenho-animado japonês, em que eles disseram ser uma “evolução” (tal como esses bonecos sofriam nos programas exibidos pela TV na época) - porém, no caso, uma “evolução” especialmente criada por eles. Ao me entregarem suas produções, me prometeram uma nova “evolução” para o próximo ano: o que cumpriram! Eu havia guardado os trabalhos e pude constatar com eles que, de fato, esses desenhos eram mesmo uma “evolução”! Já que, além das características (as “mutações”) criadas para os bonecos, a ousadia dos traços, a inteligência das formas, a ocupação espacial, o uso criativo da cor, dentre outros elementos essenciais da visualidade estavam bem mais trabalhados. As criações dos alunos realmente “evoluem”, se “aprimoram” com o tempo (melhor seria dizer se “diferenciam” das etapas anteriores de sua formação e desenvolvimento humano-temporal-cultural-etc.), mas, os elementos básicos da construção visual “permanecem” – assim ao menos dentro de nossa cultura - caberá a eles (nossos “pequenos”), depois de se familiarizarem com seu uso (i.e., aprenderem pela repetição criativa, apropriação dos fazeres e saberes e o pensar reflexivo), um dia (quem sabe?), tudo mudar, transformar!


NOTAS:
(1) P.ex., a partir de um e-mail que recebi sobre as polêmicas em uma das Bienais de SP é que tive a ideia de trabalharmos “sticker art”(*); já em outra ocasião, uma série de fatores como, uma exposição de jovens artistas contemporâneos no MAM-RJ e uma outra no CCBB-RJ sobre a arte cinética de Mary Vieira, um livro de Onfray – A Razão Gulosa - , um projeto da Rede ligado ao programa nutricional “Cinco ao Dia” – de incentivo ao consumo de frutas, legumes e verduras ao menos cinco vezes ao dia -, etc. – levou-me à proposta de trabalharmos “eat art” (ainda pretendo postar - em "Histórico de Arte da Mario" - sobre este trabalho realizado em 2005); ou, mais recentemente, as oficinas de Animação que fiz (AnimaEscola/Animamundi e as da MultiRio) resultaram em uma série de propostas inserindo a linguagem do cinema de animação nas aulas regulares de artes(**) - etc.

(*)Ver link: http://artemariopiragibe.blogspot.com/2010/05/joao-candido-e-revolta-da-chibata.html
(**)Ver tag "Animação" no blog do Núcleo de Arte Grande Otelo: http://nucleodeartegrandeotelo.blogspot.com/search/label/Anima%C3%A7%C3%A3o Algumas das animações tiveram a participação de trabalhos produzidos por nossos alunos nas aulas "regulares" de artes (como, p.ex., alguns dos folioscópios e flipbooks): ver "ANIMAÇÃO TRASH: NOSSAS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS - PARTE I": http://nucleodeartegrandeotelo.blogspot.com/2009/10/as-animacoes-de-nossos-alunos-estao-na.html


"Brasil Arte" (pintura no chão)

Fotos: Imaculada Conceição